Antes de sua m0rte, cantor Arlindo Cruz lutou por muito tempo contra o maldito vício da… Ver mais

Um dos maiores nomes do samba brasileiro ganha agora um retrato intimista e cheio de emoção. Lançado recentemente, o livro escrito pelo jornalista e escritor Marcos Salles mergulha na vida e no legado de Arlindo Cruz, revelando passagens marcantes e, muitas vezes, desconhecidas do público. Entre risos e lágrimas, a obra percorre desde a infância no subúrbio carioca até os dias atuais, marcados pela luta contra as sequelas de um AVC sofrido em 2017. Salles descreve o trabalho como um projeto para “rir, chorar e pensar” — e cada capítulo reforça essa promessa.
O autor destaca momentos particularmente comoventes, como o capítulo 14, “Arlindo Cruz é Pop”, que narra a relação do sambista com Marcelo D2 e Rogê, mostrando como o carisma e a versatilidade de Arlindo o aproximaram de diferentes estilos musicais. Já o capítulo 25, “O Legado de Arlindo Cruz/A Falta que Ele Faz”, reúne depoimentos de 45 pessoas que conviveram com o artista. Muitas dessas conversas, segundo Salles, terminaram em choro, tamanha a intensidade das lembranças. “Foram inúmeros momentos de emoção. Impossível contar todos”, afirma.
Nascido em Piedade, zona norte do Rio de Janeiro, Arlindo Cruz começou sua relação com a música aos seis anos, quando aprendeu a tocar cavaquinho. O talento precoce se consolidou anos depois, quando integrou o grupo Fundo de Quintal, responsável por revitalizar o samba nos anos 1980. No conjunto, participou de composições que se tornaram clássicos, trazendo frescor ao gênero sem perder as raízes. Essa trajetória é contada com riqueza de detalhes, valorizando a importância do artista não só como cantor e compositor, mas como figura central na história cultural brasileira.
Marcos Salles conheceu Arlindo em 1981, no tradicional Pagode do Cacique. Naquela época, ele ainda era conhecido como “Arlindinho”, apelido que batizou a roda de samba que comandava. Com o tempo, o evento passou a se chamar “Pagode do Arlindinho” e estreitou ainda mais os laços entre Salles e a família Cruz. Foi Babi Cruz, então esposa do sambista, quem o convidou para escrever a biografia. O projeto começou em 2021 e só foi concluído em 2024, um processo que exigiu fôlego emocional do autor. “Houve momentos em que eu precisava parar, respirar, ouvir seus sambas e só então voltar ao texto”, relembra.
A biografia não se esquiva de abordar episódios difíceis, como a luta de Arlindo contra o uso de cocaína. Salles relata que, nos anos 1980, a droga se espalhou rapidamente no meio musical e atingiu muitos artistas. Arlindo tentou diversas vezes se afastar do vício, passando por internações e tratamentos. Segundo relatos de seu filho, também chamado Arlindinho, pouco antes do AVC o cantor havia praticamente abandonado o uso, mostrando força de vontade e desejo de recomeçar. Essa franqueza, presente nas páginas do livro, humaniza o ídolo e reforça a complexidade de sua trajetória.
Ao longo da pesquisa, Salles constrói a imagem de um homem de generosidade rara, sempre disposto a ajudar sem perguntar para quem ou por quê. Compositor prolífico, Arlindo produzia música todos os dias, com talento igualmente impressionante para letras e melodias. Mesmo capaz de criar sozinho, fazia questão de dividir créditos com parceiros, valorizando a coletividade no samba. Profundamente ligado ao candomblé, mantinha uma postura de respeito a todas as religiões, pregando tolerância e convivência harmoniosa — postura que também se refletia em sua liderança tranquila no ambiente musical.
O livro, mais do que uma biografia, é um testemunho de afeto e admiração. Ao recordar as gargalhadas, as brincadeiras e a presença marcante de Arlindo Cruz, Salles deixa claro que o samba ainda sente a ausência do mestre. “Que um dia ele acorde e volte, pelo menos a falar com a gente”, escreve, expressando um desejo compartilhado por fãs e amigos. Até que esse momento chegue, a obra cumpre um papel essencial: manter viva a memória de um artista que fez da música um instrumento de união, resistência e alegria.